segunda-feira, 15 de março de 2010

Adriano e Haiti.

Nem bem tinha ocorrido o terremoto do Chile, vozes “civilizadas” se apressaram em diferenciar uma “comunidade” organizada – o Chile – de um agregado de gente – o Haiti. Reproduziam, no seu elitismo, o lema central do capitalismo - “Civilização ou barbárie”.
Uma sociedade desagregada, miserável, condenada às calamidades – a menção a que seja uma nação negra fica sugerida -, em comparação com esse pedaço de Europa no sul do continente - que até elegeu um Berlusconi como presidente. A anarquia haitiana e a sobriedade chilena.

Quando, de repente, começaram os saques, apareceram aos borbotões os “rotos” chilenos – como os ricos chamam os pobres por lá – atacando supermercados, foi se revelando o desamparo em que ficou a massa da população. Surgiram os erros gigantescos na previsão e na chamada da população para que se precavesse do tsunami que sucedeu o terremoto e causou outras tantas mortes. Revelou-se um número equivocado de mortos, corrigiu-se e de novo tinham se equivocado. A população reprovou a forma vacilante do governo enfrentar as consequências do terremoto.

A própria presidente Bachelet e seu Ministro de Relações Exteriores – dando a impressão que buscavam diferenciar-se do Haiti, evidenciando que não tinham se tornado um país desvalido – se apressaram em dizer que não necessitariam de ajuda exterior. Poucos dias passaram até que tiveram que se desmentir, solicitando ajuda.

Os terremotos são fenômenos terríveis, não apenas pelas mortes e outros danos humanos e físicos graves que produzem, mas também porque nos dão a sensação literal de que “nos falta o chão”, jogando-nos no abandono, na insegurança, já que nos faltando o chão, parece que nada mais pode nos amparar. Quem viveu essa experiência traumática, nunca mais a esquece.

É evidente tambem que em qualquer catástrofe natural, os países mais pobres e as regiões mais pobres desses países sofrem muito mais, muito mais casas são destruídas, muito mais gente morre. Não se trata de maior ou menor “civilização”, mas de riqueza, de sua concentração nas mãos dos países que foram colonizadores e são imperialistas e os outros, vitimas deles.

No Haiti, mais além da imagem que a imprensa tratou de passar, do último circulo do inferno, a população se mobilizou, se organizou, demonstrou uma valentia e uma coragem moral que poucos países e povos demonstraram. Assim como o povo chileno resistiu aos duros sofrimentos do terremoto, às perdas, às destruições. Claro que o nível atual de desenvolvimento do Chile é superior ao do Haiti, por razões históricas muito claras – em que as potências capitalistas têm responsabilidades gravíssimas, basta dizer que somente agora decidiram cancelar a dívida externa do Haiti.

Dá para fazer comparação com o Adriano. Quando ele desistiu de seguir jogando na Inter de Milão, renunciou a um contrato milionário, associado à fama e ao exibicionsmo midiático, porque “não estava feliz”, vozes similares não demoraram a dizer que havia algo muito mais complicado com ele, “álcool, drogas ou até algo pior”. Ele tinha que estar se comportando sob os efeitos da bebida, da droga ou “de algo pior”, para renunciar a dinheiro pelo sentimento de felicidade, de estar na favela da sua infância brincando com pipa com seus amigos, a quem mandava comprar sanduíches.

Agora, bastou o Adriano aparecer envolvido em uma festa noturna, um conflito com a namorada, faltar a treinos, para essas mesmas vozes – que consideram que Kaká, Ronaldinho, etc., se comportam como se deveria comportar um ser humano “normal” -, para pregar que Adriano não seja mais convocado para a seleção, que não vá ao Mundial – talvez com esperança que o Ronaldo corintiano, aquele que deixou de vir para o Flamengo, seu time do coração, para ir ao Corinthians, por dinheiro – o substitua.

Essa atitude preconceituosa, a mesma que quis condenar o Haiti e absolver o Chile, se volta contra o Adriano, como a dizer que “quem nasceu nesse meio, quem prefere esse meio a Milão, um tipo com esses valores, acaba recaindo sempre no vício, não é pessoa confiavel”, etc., etc.

Os pobres – os países e as pessoas - nasceram pobres e assim morrerão. Como se tivessem um destino de ser pobres, não fossem produto histórico de processos que os produziram como pobres, sofrendo as pressões para seguirem assim. O Haiti não tem jeito, Adriano não tem jeito. Os pobres não têm jeito, quem nasceu pobre, morrerá pobre.

É intolerável para os preconceituosos, que Adriano tenha tomado essas atitudes, torcem para que naufrague diante do alcoolismo, para vituperar seu famoso: “Eu sabia, eu não disse, essa cara nao presta, etc., etc. Da mesma forma que desconhecem que o Haiti foi a vanguarda das lutas de independência na América Latina, que derrotou a Franca de Napoleão, antes de ser massacrada e pagar até hoje o preço dessa audácia.

Os pobres teriam que se conformar em ser pobres. Evo Morales, Lula, Mujica, Hugo Chávez teriam que dar errado; FHC, Sanchez de Losada, Carlos Andres Perez, Lacalle – teriam que ter dado certo. Mas a realidade é outra.

*Emir Sader. Sociólogo e cientista político.

Fonte: Carta Maior. 14/03/2010.

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